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As repercussões criminais da exclusão do ICMS do faturamento da empresa
Em julgamento proferido em âmbito de repercussão geral (tema 69), em 9/3/2017, o Plenário do STF uniformizou a jurisprudência e excluiu o valor de ICMS recebido pelo vendedor ou prestador de serviços da base de cálculo do PIS e da Cofins, por considerar que esse valor não integra o conceito de faturamento (RE 574.706/PR – rel. min. Cármen Lúcia).
Em julgamento proferido em âmbito de repercussão geral (tema 69), em 9/3/2017, o Plenário do STF uniformizou a jurisprudência e excluiu o valor de ICMS recebido pelo vendedor ou prestador de serviços da base de cálculo do PIS e da Cofins, por considerar que esse valor não integra o conceito de faturamento (RE 574.706/PR – rel. min. Cármen Lúcia).
O fundamento da exclusão do ICMS do conceito de faturamento da empresa foi a consideração de que o valor correspondente recebido pelo contribuinte não integra sua propriedade, mas configura mero trânsito contábil de receita de titularidade do Estado.
Esse fundamento foi esclarecido pela ministra Cármen Lúcia (relatora), ao afirmar que “o contribuinte não inclui como receita ou faturamento o que ele haverá de repassar à Fazenda Pública” (p. 26 do inteiro teor do acórdão), a partir das seguintes considerações de Roque Carrazza[1]: “Enquanto o ICMS circula por suas contabilidades, eles apenas obtêm ingressos de caixa, que não lhes pertencem, isto é, não se incorporam a seus patrimônios, até porque destinados aos cofres públicos estaduais ou do Distrito Federal” (p. 20). “Fenômeno similar ocorre no âmbito das empresas privadas quando valores monetários transitam em seus patrimônios sem, no entanto, a eles se incorporarem, por terem destinação predeterminada. É o caso dos valores correspondentes ao ICMS (tanto quanto os correspondentes ao IPI), que, por injunção constitucional, as empresas devem encaminhar aos cofres públicos [...] tais valores não se integram ao patrimônio das empresas, ‘sem quaisquer reservas, condições ou correspondência no passivo’, e, assim, não ‘vêm acrescer o seu vulto, como elemento novo e positivo” (p. 21).
O ministro Marco Aurélio também entendeu que “o contribuinte não fatura e não tem, como receita bruta, tributo, ou seja, o ICMS” (p. 46), e ministra Rosa Weber esclareceu sua decisão ponderando que “a receita bruta pode ser definida como o ingresso financeiro que se integra no patrimônio na condição de elemento novo e positivo, sem reservas ou condições” (p. 79), e concluiu (com base no entendimento de Ricardo Mariz de Oliveira) “ser a receita “algo novo, que se incorpora a um determinado patrimônio”, constituindo um “dado positivo para a mutação patrimonial” (p. 80).
O ministro Luiz Fux afirmou que “o destinatário desse faturamento é o Poder Público, não é o contribuinte” (p. 83), e invocou como fundamento o voto do ministro Celso de Mello proferido no Recurso Extraordinário 240.785, com o seguinte teor: “A parcela correspondente ao ICMS pago não tem, pois, natureza de faturamento (e nem mesmo de receita), mas de simples ingresso de caixa (na acepção ‘supra’). [...] Empresas não faturam ICMS” (p. 84).
O ministro Ricardo Lewandowski asseverou que “não se pode considerar como ingresso tributável uma verba que é recebida pelo contribuinte apenas com o propósito de pronto repasse a terceiro, ou seja, ao Estado. E está-se diante de um fenômeno que o grande, eminente tributarista Roque Carrazza denomina de 'mero trânsito contábil'. É um simples trânsito contábil, não ingressa no patrimônio da empresa, do contribuinte”, e concluiu que “essa verba correspondente ao ICM é do Estado, sempre será do Estado e terá que um dia ser devolvida ao Estado; não ingressa jamais, insisto, no patrimônio do contribuinte” (p. 101).
O ministro Marco Aurélio especificou que, “seja qual for a modalidade utilizada para recolhimento do ICMS, o valor respectivo não se transforma em faturamento, em receita bruta da empresa, porque é devido ao Estado” (p. 107), após ter se reportado ao seu voto proferido no Recurso Extraordinário 240.785, nos seguintes termos: “O conceito de faturamento diz com riqueza própria, quantia que tem ingresso nos cofres de quem procede à venda de mercadorias ou à prestação dos serviços, implicando, por isso mesmo, o envolvimento de noções próprias ao que se entende como receita bruta. Descabe assentar que os contribuintes da Cofins faturam, em si, o ICMS” (p. 104). [...] “Valor que não passa a integrar o patrimônio do alienante quer de mercadoria, quer de serviço, como é o relativo ao ICMS. Se alguém fatura ICMS, esse alguém é o Estado e não o vendedor da mercadoria” (p. 106).
O ministro Celso de Mello fundamentou seu voto em precedentes do STF e no entendimento doutrinário. Inicialmente, invocou o seguinte fragmento do voto proferido pelo ministro Marco Aurélio no Recurso Extraordinário 240.785: “Descabe assentar que os contribuintes da Cofins faturam, em si, o ICMS. O valor deste revela, isto sim, um desembolso a beneficiar a entidade de direito público que tem a competência para cobrá-lo. [...] ônus fiscal atinente ao ICMS. O valor correspondente a este último não tem a natureza de faturamento” (p. 183), e de forma complementar aludiu ao voto do ministro Cezar Peluso proferido no mesmo julgamento: “Se destaca o valor do ICMS para efeito de controle da transferência para o patrimônio público, sem que isso se incorpore ao patrimônio do contribuinte. (…) trata-se de um trânsito puramente contábil, significando que isso, de modo algum, compõe o produto do exercício das atividades correspondentes aos objetivos sociais da empresa, que é o conceito de faturamento” (p. 184).
Ao final, indicou o voto do ministro Ricardo Lewandowski, também proferido no mesmo julgamento: “O ICM não integra, a meu juízo, a receita da empresa a nenhum título; ela não integra o valor da operação” (p. 184), e com base nesses precedentes concluiu que “o valor pertinente ao ICMS é repassado ao Estado-membro (ou ao Distrito Federal), dele não sendo titular a empresa, pelo fato, juridicamente relevante, de tal ingresso não se qualificar como receita que pertença, por direito próprio, à empresa contribuinte” (p. 185).
Para reforçar seu fundamento, transcreveu a seguinte lição de Roque Carrazza[2]: “A inclusão do ICMS na base de cálculo do PIS e da COFINS leva ao inaceitável entendimento de que os sujeitos passivos destes tributos ‘faturam ICMS’. A toda evidência, eles não fazem isto. Enquanto o ICMS circula por suas contabilidades, eles apenas obtêm ‘ingressos de caixa’, que não lhes pertencem, isto é, não se incorporam a seus patrimônios, até porque destinados aos cofres públicos estaduais ou do Distrito Federal” (p. 190), e ainda citou um trecho do parecer de Humberto Ávila: “os valores recebidos a título de ICMS apenas ‘transitam provisoriamente’ pelos cofres da empresa, sem ingressar definitivamente no seu patrimônio. Esses valores não são recursos ‘da empresa’, mas ‘dos Estados’, aos quais serão encaminhados. Entender diferente é confundir ‘receita’ com ‘ingresso’” (p. 193/194).
Portanto, o Plenário do STF definiu expressamente (e em julgamento de uniformização de jurisprudência proferido em tema de repercussão geral) que o valor correspondente ao ICMS recebido pelo contribuinte no preço pago pelo comprador ou tomador do serviço não é propriedade desse contribuinte, mas, sim, do Estado.
Essa classificação tem repercussão direta sobre a configuração do crime contra a ordem tributária tipificado no artigo 2º, II, da Lei 8.137/90.
A polêmica sobre a classificação do delito de não recolhimento de tributos indiretos ou devidos por agentes de retenção como apropriação indébita ou como uma modalidade delitiva autônoma é anterior à edição da Lei 8.137/90[3], e permanece durante estas quase três décadas de sua vigência.
A concepção que classifica o tipo como uma espécie autônoma pressupõe que o valor correspondente ao ICMS cobrado no preço pertence ao contribuinte e não ao comprador ou tomador do serviço. Neste caso, tratar-se-ia de uma tipificação penal de uma inadimplência de obrigação tributária específica, cuja peculiaridade encontra-se na circunstância de o sujeito passivo da obrigação tributária repassar para terceiro a repercussão econômica da operação[4]. Essa classificação enseja uma outra polêmica, consistente na divisão de opiniões sobre constitucionalidade da criminalização dessa hipótese típica. Não obstante, o STF reconheceu a constitucionalidade da aplicação de sanção penal no caso, por se tratar de pena criminal, e não prisão civil decorrente de dívida (porque ambas têm naturezas, fundamentos e finalidades distintas)[5].
Paralelamente, se propõe a classificação do fato como uma hipótese típica assemelhada à apropriação indébita[6], cuja tipicidade da conduta pressupõe que o valor descontado ou cobrado pelo sujeito passivo da obrigação tributária de terceiro com a finalidade de posterior recolhimento aos cofres públicos seja de propriedade do Estado, com o que não se configura a polêmica sobre a constitucionalidade do delito.
Com a definição estabelecida pelo STF no caso anteriormente comentado, restou definido o pressuposto da classificação do delito, qual seja, a propriedade do valor cobrado como parcela correspondente ao ICMS incidente sobre a operação, pois foi adotada a tese dos interessados, que defenderam que o tributo não constitui “patrimônio/riqueza da empresa, (...) tratando única e exclusivamente de ônus fiscal ao qual está sujeita”.
A definição dessa premissa do raciocínio (propriedade do valor correspondente ao ICMS cobrado pelo contribuinte do comprador da mercadoria ou tomador do serviço) impõe a conclusão de que seu não recolhimento no prazo legal corresponde à apropriação indébita do valor correspondente, pois esta é uma dedução lógica necessária na composição do silogismo.
Porém, devido aos efeitos criminais dessa proposição, se pretende agora afirmar o contrário, ou seja, que o valor correspondente ao ICMS cobrado pelo contribuinte compõe o preço da operação e configura propriedade do vendedor ou prestador de serviços[7], para a partir dessa premissa rediscutir a constitucionalidade do tipo penal mediante a argumentação de tratar-se de prisão civil por dívida[8].
O problema é que o valor correspondente ao ICMS cobrado pelo contribuinte não pode ser propriedade do Estado quando considerados seus efeitos tributários (composição da base de cálculo do PIS e da COFINS), e propriedade do contribuinte quando considerados seus reflexos penais (classificação jurídica do não recolhimento do valor cobrado de terceiro), pois esta classificação é contraditória[9].
Trata-se de um óbice imposto pela lógica clássica, que é a ciência da validade do raciocínio. As proposições e argumentos são classificados como corretos ou incorretos com base em algumas regras fundamentais, dentre as quais a exigência da não contradição (algo não pode ser e não ser) e consideração do terceiro excluído (algo somente pode ser ou não ser)[10].
Com base nestas regras, a afirmação de que algo seja e não seja é contraditória (devido a uma oposição absoluta), e em consequência disto a proposição é classificada como logicamente falsa, ou inconsistente[11].
Esta estrutura da racionalidade do pensamento humano é pré-jurídica, e condiciona a validade do raciocínio jurídico. Por este motivo, não pode ser desprezada por ocasião da interpretação do conteúdo do ordenamento jurídico, que deve manter a coerência interna necessária para sua compatibilização com as regras elementares da compreensão e racionalidade humana.
Consequentemente, se o valor de ICMS cobrado pelo contribuinte não integra sua propriedade, mas configura mero trânsito contábil de receita de titularidade do Estado, seu não recolhimento aos cofres públicos no momento devido configura apropriação indébita.